quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Arqueologia e arqueociências

O diálogo entre a Arqueologia e as denominadas suas ciências auxiliares.
Hierarquias de discurso.

Os extractos abaixo são fragmentos de uma sequência de troca de comentários com João Pedro Tereso. São um desafio e uma proposta de reflexão acerca do panorama de áreas disciplinares que hoje convergem para a Arqueologia e um exemplo de como elas se podem e querem centrar em questões relacionadas com os tópicos das ciências humanas, porventura com mais profundidade e consistência do que a própria Arqueologia.


Manuel de Castro Nunes

Caro João Pedro Tereso.

É para mim entusiasmante confrontar-me com um especialista das ditas ciências auxiliares da arqueologia aberto à reflexão sobre questões de natureza teórica ou epistemológica como o Caro Amigo e com a segurança e consistência com que se pronuncia sobre as questões já abordadas. Quando escrevo em itálico ciências auxiliares reporto-me à constatação de que a Arqueologia foi ela própria expelida pela História como ciência auxiliar.

De facto, do meu ponto de vista, não existem ciências auxiliares umas das outras, há circunstâncias em que elas convergem ou se centram nos mesmos tópicos, criando uma multiplicidade de perspectivas de aboradagem. Recentemente replicava a um matemático que seria uma gratificante experiência se um matemático, ou um físico, fosse chamado a arguir uma tese de doutoramento em arqueologia ou história.

É no cruzamento das diversificadas abordagens que dimanam das diversas áreas disciplinares que se reunem sobre um objecto que, estou convicto, resultará a renovação do pensamento histórico e do pensamento arqueológico, da sua narrativa e do seu discurso. Das suas práticas e procedimentos também.

Renovar-se-á também o alcance humano e social das áreas discipçinares que convergem no campo extenso das ciências humanas. É outra questão que poderemos desenvolver depois.

Imagina até onde podíamos levar o aparentemente insignificante episódio da Unidade Estratigráfica 0 que narra no comentário ao seu post Mitos da Historiografia (...)? Como metáfora poder-se-ia escrever um tratado.

Vou com certeza aproveitar a sua abertura, com consideração pela sua limitada disponibilidade, obviamente, para lhe colocar algumas questões, se entender oportuno reunindo outros investigadores cada vez mais interessados em fazer convergir num programa de reflexão epistemológica a maior amplitude de disciplinas.

Devo dizer-lhe que estou de acordo consigo quando sugere que o pensamento não pode imobilizar o natural fluir da investigação operatória. É por isso que, para mim, são os episódios ocorrentes, do tipo UE0, que podem suscitar a reflexão.

Incomodá-lo-ei de novo em breve.

Um abraço.


João Pedro Tereso

Em relação às ciências auxiliares, não fico melindrado como arqueólogo e "arqueobotânico" em ver as minhas áreas de trabalho apelidadas de auxiliares. Não vejo desprimor nessa designação, embora também não veja utilidade na mesma. Espero que caminhemos para um modelo de ciência no qual diferentes disciplinas se articulem em harmonia. Aquando da minha licenciatura achei gritante e constrangedora a ignorância consciente que alguns historiadores (para me fazer compreender, vou esquecer por um momento que os arqueólogos também são historiadores) votavam à investigação arqueológica que versava sobre as mesmas realidades que eles estudavam! Aliás, nos corredores da faculdade (em especial entre alguns docentes) existia até algum desdém para com aqueles que andavam a mexer na terra durante o Verão. Não faz sentido.

Na minha investigação, estou a contactar com corpos conceptuais muito interessantes da área das ciências do ambiente. Vários ramos foram criados já há muitos anos de forma aproximar a investigação antropológica e sociológica da investigação ecológica. O resultado foi o proliferar de artigos sobre "traditional rural landscapes" e "social ecological resilence". Porque o Homem e a Natureza fazem parte da mesma realidade. Logo as ciências que estudam estas realidades não podem permanecer afastadas.

Mais ainda, quero direccionar parte do meu trabalho para a uma "paleoetnobotânica aplicada" que, com base em conceitos como LTER (Long Term Ecological Research) e outros, sustenta que o estudo do passado não tem de ser unicamente escolar (ainda que não seja de todo errado que o seja). Nesta linha de investigação que espero fomentar no futuro - talvez daqui a uns anos - as ciências do passado ou ciências históricas integram-se facilmente nas ciências sociais e naturais dos tempos presentes. Será o Tempo um elemento assim tão relevante para distinguir realidades? Não somos nós ainda sapiens? o trigo não é ainda trigo apesar da manipulação genética?

Em suma, ciências sociais, naturais, passado, presente, futuro... tudo faz parte de uma mesma realidade. Auxiliares? Bem, quando aplicamos estatística, a matemática é auxiliar da arqueologia? A matemática será, então, auxiliar de todas as ciências.

O erro está em assumir que as ciências principais podem viver sem as auxiliares e as auxiliares não fazem sentido sem as principais.

Analisemos:

A Arqueologia existiu muito tempo sem a Arqueobotânica e outras arqueociências. Ainda agora a maioria da arqueologia que se faz, não tem qualquer abordagem às arqueociências. Isto confirma que estas são auxiliares? Não. Só confirma que a maior parte dos arqueólogos faz mal o seu trabalho. É como estar a escavar e só recolher uma parte dos artefactos.

A arqueobotânica, de facto, não existe isolada. Ao estudar arqueobotânica eu estou a estudar arqueologia. Não há distinção. É como se alguém dissesse que estuda ânforas mas não estuda arqueologia.

Isto só me leva a dizer que estamos perante uma realidade una, uma só disciplina, que compartimentamos de forma útil, ainda que em parte artificial.

Em próprio utilizo a expressão "ciência auxiliar". Ás vezes para facilitar a comunicação com o meu interlocutor. No fundo não vejo mal, embora, como já disse, não veja qualquer utilidade na designação. Fico contente por estarmos de acordo em relação a este assunto.

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