sábado, 3 de abril de 2010

A propósito de material e imaterial, património e museus.

Continuação



Pedro Manuel Cardoso:

Caro Manuel de Castro Nunes prossigamos então, com todo o prazer e agradecimento.

Um agradecimento extensivo também à Lista Museum e ao Prof. José d’ Encarnação. Jamais uma boa divergência foi inimiga de uma boa convergência.
O Museu da Gestualidade não nasceu da intenção de cobrir tudo o resto, nem teve uma pretensão hegemónica ou sequer aglutinadora. Em 1986, tal como agora, trabalhava em antropologia com a minha colega Maria Isabel Tristany. Trabalhávamos na investigação da ‘origem da linguagem humana’. Foi aí que encontrámos a ‘gestualidade’. E decidimos fundar o ‘museu’ como plataforma de investigação, sistematização e recolha dos dados que obtínhamos nessa pesquisa. Foi deste modo singelo que tudo começou. Curiosamente, essa intuição acabou na actualidade por adquirir uma importância maior do que aquela que alguma vez esperaríamos. Tentarei resumir essa revalorização actual da gestualidade.
Durante muito tempo, em Ciências Sociais e Humanas (antropologia, sociologia, psicologia), prevaleceu a tese de que a Linguagem teria sido uma invenção humana - tal como a “técnica”, a arte ou a escrita. A Linguagem teria sido um “produto social”, cuja origem deveria ser procurada na lógica e nos fundamentos da organização social (Lévi-Strauss, 1970), e não nas capacidades de um cérebro individual (N. Chomsky). Esta tese culturalista foi mais tarde actualizada por William Noble e Lain Davidson (1996). Todavia Steven Pinker, dando continuidade à perspectiva inatista de N. Chomsky, haveria de apresentar em 1994 uma tese contra-intuitiva na qual a linguagem teria tido origem numa capacidade “biologicamente programada”. Este impasse entre as teses culturalistas e as teses inatistas manteve-se sem solução até à actualidade.
Mais recentemente, Merlim Donald proporia a hipótese de uma origem mimética da linguagem (1997) que se teria desenvolvido desde Australopitecus. Michael C. Corballis da Universidade de Auckland (Nova Zelândia), em 2001, proporia a tese de uma origem gestual da linguagem, que teria sido já utilizada em Homo erectus. O linguista Derek Bickertom (1997) proporia, também desde Homo erectus, a tese da existência de uma espécie de protolinguagem que teria sido a fôrma que teria moldado a linguagem actual. Terrence Deacon (1997) proporia uma tese intermédia, segundo a qual algures durante o processo de hominização teria ocorrido um processo de co-evolução da linguagem e do cérebro. Na actualidade Laura Petitto (2001) e os seus colegas da Universidade Mcgill, em Montreal (Canadá) mostraram por “imagens cerebrais”, utilizando as técnicas PET (tomografia por emissão de positrões), que as zonas que se acreditava estarem apenas especializadas no processamento auditivo da linguagem (sons) também se activavam quando os surdos-mudos comunicavam por ‘gestos’. Então, duas interpretações passaram a poder ser deduzidas destes resultados: - Ou as capacidades de processamento da linguagem eram independentes do canal sensorial, confirmando no cérebro uma estrutura inata propriamente linguística. Ou, ao invés, o cérebro seria especializado no “tratamento de imagens complexas”, quer fossem construídas através de sons ou através de gestos.
Como se vê a gestualidade adquiriu hoje uma importância que antes dos anos 1980, e mesmo dos anos 1990, não tinha. Mas quem a investigava como nós, e tantos outros, estava mais preparado para a intuir.
A questão na actualidade coloca-se do seguinte modo: - A confirmarem-se estes dados, não apenas a “linguagem verbal” mas também a “linguagem não-verbal” podem estar ambas implicadas no processo de “dupla articulação” e de “representação simbólica”, responsáveis pelo processo global de comunicação humana. Este resultado (hipótese) foi decisivo para a revalorização da importância das investigações em gestualidade. Porque passaram a faltar investigações que pudessem indicar de que modo esse entre-cruzamento se realizaria.
No caso da investigação em antropologia que prosseguimos com Maria Isabel Tristany partimos da hipótese de que o cérebro necessitará de fragmentos (‘formas’) que permitam uma representação (‘imagem’), para depois poder associá-la a um ‘sentido/significado aprendido’ (socialmente pertinente). Ou seja, o nosso contributo advém de investigar, em Portugal, em amostras e contextos interactivos bem delimitados, e em confronto com as variáveis género e idade, quais e como são as ‘configurações gestuais’ escolhidas socialmente para se tornarem “representações” e “signos” (“unidades elementares”) constitutivos do processo de comunicação cultural.
Foi assim que o Museu da Gestualidade nasceu. Portanto ainda não ligado ao aprofundamento da questão da Museologia e do Património que fizemos posteriormente.
Caro Manuel de Castro Nunes espero ter respondido, em parte, à questão que me colocou.
Antes de regressar novamente à Museologia e ao Património permitam-me um comentário. Quando os responsáveis e as entidades pelo Património dito “intangível” ou “imaterial” se propõem, por exemplo, fazer o seu ‘inventário’ devem esforçar-se por possuírem as habilitações técnicas e científicas adequadas. Porque são áreas muito desenvolvidas a nível mundial, com que a museologia não está familiarizada. Sugiro que façam uma aproximação, ou mesmo estabeleçam uma parceria, com o Programa Europeu “Origins of Man, Language and languages”, e com a “International Society for Gesture Studies” fundada em 2002.
Mas regressemos novamente ao Património.
A gestualidade é apenas uma parte das quatro partes do ‘objecto patrimonial’. Por exemplo no objecto patrimonial ‘copo’, o ‘modo de beber’ ou o ‘modo de o pegar’ são uma e a mesma coisa patrimonial - seja no Neolítico ou na contemporaneidade, seja no culto ou em ambiente profano. Que obviamente assumiram ‘formas’ (isto é, ‘documentos-dados’) diferentes consoante o tempo histórico. Assim o é também para os fonemas que o anunciam na fala; e para os ícones que o etiquetam, a quem F. Saussure (ou G. Gabelentz, 1891) chamou de “significantes”. Todas estas quatro partes são «uma dinâmica una da realidade constituinte do ‘objecto patrimonial’».
O canto, a música, a desgarrada, o assobio, o pregão, a serenata pertencerão á ‘oralidade’. A quadra e a décima se forem registos alfanuméricos, ou se forem sinais ou escritas e não sons, pertencerão à ‘iconicidade’. Os modos de utilização dos músculos faciais á volta do zigomático, e dos outros no fazer dessa ‘oralidade’ pertencerão outra vez à ‘gestualidade’. Os ‘suportes’ onde tudo isto for registado pertencerão à parte da ‘materialidade’.
Antes de prosseguir que fique esclarecido para quem nos ‘vê’: Não consigo ir muito mais além daquilo que sou capaz. Que é muito pouco. Mas aqui o que fazemos é um diálogo e uma troca. E, na humildade disso, provavelmente não há «respostas». Apenas o fluir que Manuel de Castro Nunes mencionou na epígrafe desta mensagem. Um percurso que não tem fim, nem metas, nem certezas absolutas.
Assim mais leve, e como hipótese acerca da gestualidade e do Património em geral, diria que a deficiência está em nós. Não somos capazes senão de dividir para perceber/compreender. Mas essa limitação não nos impede de percebermos que fragmentámos. Portanto não é impeditiva de definirmos como ‘modelo’ a Unidade. Apesar de não a conseguirmos alcançar.
O problema são os nossos limites perante a evidência duma realidade patrimonial que se nos dá em quatro partes. Mas essa é também a beleza do nosso desafio de viver, perante uma consciência que nos dá à frente aquilo que o metabolismo perceptivo e funcional não é capaz.
É por isso incompreensível a guerra que se está a fazer acerca da mudança do Museu Nacional de Arqueologia. O legado de José Leite de Vasconcelos e a gestão do Património Português são reduzidos à mesquinha questão do(s) ‘museu’.
A falta de consistência nesse debate irá ser aproveitada, se bem antevejo, pelos políticos com letra pequena. Porque os há com letra grande. A Política, para mim, é nobre. E aparecerão também, se bem adivinho, os políticos disfarçados de museólogos (arqueólogos e demais especialidades aparentemente interessadas no Património). Não faltará muito para o debate se cingir às eternas duas facções binárias características do obscurantismo: [‘saio’ ou ‘não saio’]; [é ‘laranja’ ou ‘cor-de-rosa’]; [é ‘vermelho’ ou ‘azul’]?


Uma tristeza… enfim.


Pedro Manuel Cardoso


(Museu da Gestualidade)


Manuel de Castro Nunes:

Estou também convencido de que, neste itinerário, passo a passo, remataremos em convergência, nem que seja na conclusão de que, mau grado os importantes passos na reflexão e na pesquisa sobre a matéria fundamental, a origem, mas também a sede da linguagem, vamos polarizá-la, por razões operacionais no passo em que estamos, na fórmula Strauss versus Chomsky, nos vai levar ao nó que jamais, ou por enquanto não conseguiremos desatar.

E agradeço também à assembleia e ao Professor José d’Encarnação a paciência para nos permitirem dialogar aqui. Tenho a certeza de que a razão foi a de reconhecerem à matéria inequívoca relevância para ser aprofundada.
E creia em que estou sinceramente convencido de que a abordagem, assim em profundidade, das questões que levanta, são cruciais para que se desvaneça a ideia de que o assunto da rearrumação museológica e museográfica é meramente uma questão de circunstância política, quase uma birra, com cores à mistura.
E, uma vez que o Caro Amigo traz como lastro um intenso e extenso itinerário de consolidação das suas ideias e eu me venho agora intrometer nelas, vamos pressupor que do ponto zero, e tenho que o acompanhar passo a passo, só posso atirar-lhe escolhos para o caminho, para que, ao superá-los, me indique a direcção.
Passando por cima da descrição do itinerário de reflexão a montante, bastante detalhada por sinal, mas que ainda retomarei para aferir e comentar algumas referências, poderíamos concluir então que regressamos, todavia ancorados em novos suportes de investigação, à doutrina socrática dos arquétipos. Está de acordo?
Bem. E como já tomei por hábito dar dois passos de cada vez, para podermos progredir com mais celeridade, aproveito para lhe colocar outra questão. Talvez eu esteja cativo de qualquer preconceito, mas, observando genericamente a operação de análise desfragmentatória que opera para aprofundar a percepção radical de como o artefacto, utilizando a sua metáfora, se nos pode apresentar na sua multiplicidade, porque razão insiste depois em regenerá-lo congregado, negando a sua cisão, que já operou.
A mim parece-me, embora admita que possa estar enganado, que está a cair numa cilada. Porque o artefacto, assim decomposto, não caberia na categoria nem no género dos arquétipos socráticos. Por isso após o dividir tem que formular o cúmulo.
E só posso agradecer-lhe a sua disponibilidade. Porque o repto começou por seu e agora sou eu quem quer esvaziar o poço.
Bem… e, como diz, por vezes as divergências só parecem. Podem virar-se do avesso.
Será pois um prazer, diria necessidade, prosseguir. Se tiver a paciência para me aturar.


Um abraço.


Manuel de Castro Nunes

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