quarta-feira, 29 de julho de 2009

O que é e o que deve ser a APA

O que é e o que deve ser a APA

Há pouco mais de uma semana, interpelada em archport, a Presidente da APA revelou que a associação conta actualmente com 323 associados. É lamentável. Porque, em minha opinião, a APA, a única estrutura associativa dos profissionais arqueólogos em torno de documentos programáticos de referência eticamente irrepreensíveis, como adiante documentarei, deveria estar já a assumir um papel regulador da prática arqueológica que lhe tem sido vedado quer pela sua representatividade, quer pela sobranceria com que as entidades tutelares do Estado com ela se relacionam. De resto, o menosprezo que o Estado dispensa à APA, reflecte-se obviamente no fluxo de adesão. Provavelmente, nem pretendem as entidades tutelares outra coisa.
Para prosseguirmos este raciocínio importa-nos citar os resultados apresentados por Maria José de Almeida, 2007, Inquérito Nacional à Actividade Arqueológica (…), PRAXIS ARQUEOLÒGICA 2, referentes ao inquérito realizado no ano antecedente, 2006. Face ao reconhecimento da ausência de resposta por parte das empresas de arqueologia, Maria José de Almeida lamenta: Infelizmente, a fraca receptividade que o nosso inquérito teve junto das outras entidades que participam na promoção de actividade arqueológica impede-nos de ir mais longe e de apresentar uma imagem mais global do exercício da arqueologia. Continuamos sem saber ao certo quantos somos, como trabalhamos, com que recursos e instrumentos estamos a lidar com o nosso património arqueológico. As imagens que temos sobre o que é a arqueologia em Portugal são empíricas e fundadas em experiências pessoais inevitavelmente redutoras.
Este comentário referia um antecedente pressuposto: As respostas de empresas de arqueologia e de centros de investigação/associações apenas são significativas pela ausência.
Seja, o inquérito fica circunscrito aos dados fornecidos pelas respostas remetidas pelas autarquias, analisados por Maria José de Almeida no quadro de um modelo muito bem referenciado a questões cruciais. O universo empresarial continua a ser, em termos de avaliação possível, um buraco negro espacial, remotamente avaliável quantitativamente, Luís Raposo, 2005, Directório das Empresas (…), REVISTA ALMADAN, Nova Série, 13, que sobrevive no fundamental no quadro do aparato legal que determina a realização de EIA. O comentário que nos sugere este panorama é que as empresas de arqueologia, na maior parte da sua actividade, preparam as condições prévias de registo que antecedem a destruição de património arqueológico e constituem um universo cuja prática é inavaliável. São também inavialiáveis as condições em que exercem a sua actividade, os recursos técnicos e humanos que mobilizam ou de que têm necessidade e lhes faltam.
Devemos ainda realçar o facto de Maria José de Almeida poder concluir que, no âmbito da actividade arqueológica promovida pelas autarquias, a ratio entre as intervenções de salvaguarda e emergência e as de valorização de monumentos e sítios ser de 36% para 18%. A gestão e estudo de espólios consome 12% da actividade neste contexto, a mesma percentagem consumida pela investigação programada.
Não vou ainda abordar a questão levantada por Maria José de Almeida em relação a outra questão estrutural e estruturante, seja, a de saber se é mais adequada a inserção da prática arqueológica promovida pelas autarquias no enquadramento das estruturas de ordenamento territorial, se nas de gestão e promoção do património cultural.
Mas o que se pode deduzir é que a actividade arqueológica, de acordo com as preocupações que tenho vindo a manifestar, se configura predominantemente estruturada por factores exógenos conjunturais.
Ora, para prosseguir com outra questão, reproduzo aqui um excerto do Código Deontológico da APA, um instrumento ainda de referência ao papel regulador que à associação profissional deve ser atribuído.
Sublinha-se no entanto a particular responsabilidade deontológica do arqueólogo em relação à escavação, uma vez que o preço da recolha de informação é a inevitável perda de outra in­formação. Mesmo em intervenções de salvamento ou de natureza semelhante, o arqueólogo só deve escavar após cuidada reflexão, devendo considerar outros meios de investigação que precedam e possam complementar ou mesmo substituir a escavação. Ao projectar-se uma intervenção arqueológica que inclua escavação, deve também ser encarada a possibilidade de uma escavação não integral, prevendo-se zonas de reserva a definir previamente ou no decurso dos trabalhos.
O sublinhado é meu.
Está por fazer o diagnóstico do contingente de arqueólogos, nos vários patamares de competências e habilitações, formados durante os últimos vinte ou quinze anos, quer em contexto universitário, quer técnico-profissional. Mas o universo que se pode intuir não se confina com toda a certeza aos 323 associados da APA. É, em termos de avaliação, um universo tão nebuloso como o das empresas recenseadas e da sua caracterização. Tendo ainda em conta que muitos profissionais singulares se constituíram em empresas. E tendo ainda em conta que pode ocorrer, no quadro de um universo que não podemos recensear, que muitos arqueólogos singulares possam usar do estatuto ambíguo de profissionais e empresários ou quadros empresariais, participando na sua gestão e administração.
O que vou concluir para já é que o reforço da adesão à APA e o investimento num papel mais assertivo por parte da APA no cumprimento de um papel regulador mesmo dos critérios da definição da boa prática arqueológica se constitui no instrumento mais necessário e estrategicamente preliminar à reformulação de um modelo para a sustentabilidade da arqueologia.
E este apelo é dirigido a todos os profissionais arqueólogos, à Direcção da APA e às entidades tutelares do Estado. A bem da representação da arqueologia perante a comunidade.

sábado, 18 de julho de 2009

Mistificações

Mistificações

A aritmética da razão entre arqueólogos a mais, empresas a menos. Vamos recrutar arqueólogos já prontinhos no Brasil.

Bem, disparate não seria. A Ministra da Educação já anunciou o recrutamento de médicos no Brasil e em Espanha, haverá um dia em que virão da Somália, quando as empresas integradas no sistema de saúde já não tiverem dinheiro para lhes pagar.
E início o tópico assim, na brincadeira, para me associar à tontice, não à loucura, a loucura é caso sério, com que o assunto vai sendo abordado em vários contextos. De disparate em disparate, de contradição em contradição, a coisa vai andando à estalada e sem árbitro.
Aparece um a dizer: Não há arqueólogos a mais. Quando as empresas querem arqueólogos, não os há. Anteriormente dissera: Fazendo contas, quando um arqueólogo quer trabalhar para uma empresa, tem que pagar. Tanto para o pão, o leite e a manteiga, tanto para a enxovia, tanto para a carripana que tem que colocar à disposição, saldo (– 100, 00 Euros).
Conclusão, minha, claro: Não há trabalho para tantos arqueólogos porque as empresas não querem ou não podem pagar. Seja, não há trabalho e pronto, porque os arqueólogos não trabalham de graça, para isso existem voluntários, que têm o seu próprio e legítimo domínio.
Onde reside a dúvida? Será necessário, como preliminar para um diagnóstico, fazermos meramente a recolha das lamentações que saturam fóruns, debates, conferências e outros espaços de intervenção visível? Porque para além disso há as conversas de orelha a orelha, no chat ou no messenger, entre os que têm medo ou inibição de se manifestar publicamente. Por vezes, porque não escrevem segundo as normas.
Mas do que ninguém arreda pé é de um determinado modelo de sustentabilidade para a arqueologia, que faliu antes da sua aplicação. Faliu o modelo, porque, como em tudo, enquanto vigorou alguns tiraram dele partido. A arqueologia não tirou.
De modo que, dá-se um empurrão aqui, outro acolá, endireita-se de um lado e machuca-se do outro, a coisa ainda há de ir ao lugar.
Ora, em minha opinião, é uma típica lusa psicose. Se, para reprogramar o futuro, for necessário recensear o passado e a memória, então o futuro que se dane, eu já estou velho, os que vierem que tratem da vida. E há ainda aqueles que, mesmo apertados no limiar da sufocação, ainda cabem no pacote. A esses ninguém os tira de lá, porque há sempre aqueles aos quais a morte espreita.
E é assim que se vive. No teatro das vaidades, a cortina do fundo do palco é opaca e prolonga o cenário.
Há arqueólogos a mais? Há arqueólogos a menos? Empresas que bastem para a serventia de que as obras necessitam. Se é a estes dilemas que um consistente diagnóstico da sustentabilidade da arqueologia necessita de responder, deixando de parte as questões que se colocarão no futuro sobre o que é afinal a arqueologia e quais os patamares e domínios sobre que tem que intervir e como, em referência a que princípios e a que programa de sustentabilidade da comunidade no seu conjunto, o diagnóstico faz-se num ápice, estará porventura até já feito, segundo alguns. Faltam arqueólogos e faltam empresas para se escavar o país de lés a lés, aonde a picareta, o teodolito e o colherim forem precisos, atrás das retroescavadoras.
Eu começo a duvidar de que não existam mais empresas de arqueologia do que de construção civil, mais arqueólogos do que pedreiros ou ladrilhadores. Mas como escasseia o trabalho tanto para umas como para outras, tanto para uns como para outros, fica tudo em pé de igualdade.
Mistificações? Não. Gente distraída.
Bem, podem sempre responder-me que eu não sou arqueólogo. Como queiram. Mas, para mim, arqueologia não é isto que Vossas Excelências andam a fazer. Vossas Excelências não sois arqueólogos. Podereis vir a ser. Assim não. Eu sou.
Os jovens sem trabalho também são arqueólogos. Porque ainda não fizeram nada que se possa excluir da arqueologia pretendendo sê-lo. Porque estão desempregados.
É a primeira parte de uma intervenção que terá que prosseguir. De seguida, vamos a coisas mais objectivas, como arqueólogo gosta. Exempla.
Os exemplos.

Trabalhos a mais, cabeça a menos.

O problema surgiu com explícita visibilidade quando o Presidente da Câmara de Viseu lançou o alerta. Os materiais provenientes de uma dezena de anos de trabalhos arqueológicos no Concelho jazem em caixotes nos armazéns das empresas que os realizaram. Não se encontram classificados nem tratados para suportarem a instalação museológica. Bem, o Presidente reclama, mas ainda não há Museu, nem se sabe quando virá a haver.
Na opinião do Presidente, que não é arqueólogo e provavelmente avalia erroneamente a situação, tratar-se-á de cerca de 200.000 referências, na maioria fragmentos. O IGESPPAR não pode proceder à trasladação para o seu foro, porque não dispõe de instalações para acondicionamento de tanto material. Ou de nenhum.
E eu pergunto: isto é arqueologia? Não posso responder, porque não sou arqueólogo. Pelo menos arqueólogo desta arqueologia. Mas é sem dúvida uma das formas como a arqueologia se transmite à comunidade.
Maus exemplos, dir-se-ia. Tomáramos que fossem maus exemplos, circunstanciais.
Ninguém conseguirá fazer um raciocínio elementar? Se o modelo empresarial fosse o modelo eficaz para a sustentabilidade da arqueologia, temos que reconhecer que alguém pôs o carro à frente dos bois. Não estavam constituídos os mecanismos, nem a juzante, nem a montante, que dessem contexto a e suportassem uma intervenção racional das empresas. Entre tais mecanismos inclui-se o normativo legal que administraria a supervisão das entidades tutelares e enquadrasse a intervenção empresarial no quadro de um programa sustentável, referido a vários factores. Assim não sendo trata-se, no mínimo, de capitalismo selvagem.
Seja, os arqueólogos não necessitam de escavar para terem trabalho. De outro modo, chegará o dia em que não haverá nesga já para escavar, mas toneladas de materiais para inventariar, tratar, estudar, enquadrar em museus ou depósitos museológicos. Poderia colocar outras questões, relacionadas com a preservação de materiais e estruturas provenientes e intervencionadas no âmbito destas práticas, mas esse assunto exige ainda muita ponderação para um idóneo diagnóstico.
Deste exemplo, que se poderia multiplicar com outros que todos comentam discretamente, o que se pode concluir? O actual modelo de prática arqueológica terá porventura permitido que se continuasse a escavar, à boleia da legislação que obriga ao acompanhamento arqueológico das intervenções sobre o território, mas mergulhou na irracionalidade absoluta.
Por isso, reclamo um plano estrutural de escavações, porque estou convencido de que nem tudo o que se regista no âmbito de um EIA tem que necessariamente ser escavado. Pode ser registado e protegido de muitas outras formas. E quanto a escavações devia haver um plano que formulasse prioridades que fizessem ponderar uma estratégia de investigação e de valorização qualitativa do conhecimento arqueológico, não meramente cumulativa. E esse plano deveria prevalecer sobre qualquer outra lógica ou irracionalidade circunstancial.
Por isso proponho, suspendam-se as escavações, pelo menos as que não estão já em curso e têm que ser concluídas, até que esta questão seja devidamente ponderada.
É que, se um EDIA não obrigar necessariamente à intervenção intrusiva sobre tudo o que é detectado e registado e obrigar a outras soluções que evitem a destruição mas permitam o registo e a preservação, que acabarão por ser menos dispendiosas para as empresas de construção, geraremos um contexto de solução para outro problema que também vai sendo comentado sem alguém querer assumir que existe. A pressão das empresas de construção sobre as empresas de arqueologia para que se passe em branco por cima de estruturas arqueológicas, ou para que as intervenções se realizem com rapidez sem imobilizar as máquinas.
Quanto à razão quantitativa entre arqueólogos e necessidade do mercado de trabalho, eu tenho que inverter os termos da equação. Não pode haver mais arqueologia para poder haver e podermos formar mais arqueólogos. Temos que formar os arqueólogos de que a arqueologia necessita.
Se já os há a mais, teremos que colocar a questão nos seguintes termos: a formação de novos arqueólogos deve ser ponderada, até que exista um diagnóstico rigoroso, tendo em horizonte a necessidade civilizacional da reprodução e transmissão do saber no futuro.
E termino com a pergunta que todos já deviam ter colocado a si próprios: não será que é às empresas de arqueologia que interessa que haja arqueólogos a mais, simulando que não os encontram no mercado, para ditarem as condições de trabalho de que todos se queixam?
Bem, na crista da onda, já estou a tratar da arqueologia como mercadoria. E era o que queria evitar.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Prosseguindo um debate de crucial relevância

O futuro das qualificações profissionais.
Reiniciando um tópico que se quer superar pela porta de trás. Saindo pela da frente.
Como apelo para o retomar da abordagem deste tópico, que me recoloca na crista da onda, malogradamente, transcrevo aqui algumas intervenções em que num forum de intervenção pública respondi ao apelo de uma jovem desorientada.
Tenho acompanhado com certa assiduidade este tópico e outros relacionados com o futuro destino dos jovens que iniciam ou terminam a sua formação específica em Arqueologia e, olhando o futuro, sentem a ansiedade e o pânico de se defrontarem com um horizonte cada vez mais limitado de aplicação das suas qualificações.
Tenho 58 anos, vou em Agosto completar 59, tenho mais de vinte anos de ensino em vários contextos e níveis, sei o que é o dilema de um jovem face ao futuro, o dramático itinerário entre o sonho e o pânico, muitas vezes a precoce desilusão.
Talvez vos mace com o meu discurso de cota, mas vou-vos, em vários episódios, relatar a minha experiência e as minhas vivências, esperando, modestamente, que possam servir para vos transmitir algum alento.
O primeiro tema que vou abordar talvez vos surpreenda pois ninguém tem a coragem de o colocar como é, nua e cruamente.
Tenho um vasto investimento de trabalho no domínio da formação profissional. Durante os anos de 1993 e 1994, fui o responsável pedagógico, entre outros, do Curso Técnico de Profissionais de Turismo, na Ecola Bento de Jesus Caraça, em Évora, onde leccionei a Cadeira de Itinerários Turísticos e coordenei as Provas de Aptidão Profissional durante três anos. Instalei ainda o Curso Técnico de Profissionais de Design.
Assisti atónito à leviandade com que proliferavam os cursos profissionais em várias áreas, em que era visível que se alcançassem, a velocidade astronómica, os estreitos limites da procura por parte do mercado de trabalho. Encetei acirradas polémicas por propor que, tão importante como as transmissões de conteúdos técnico-científicos, era a formação dos jovens para a sua própria iniciativa empresarial e associativa, na procura dos contextos de uma aplicação eficaz das suas qualificações.
Coloca-se-nos ainda outra questão. A formação e qualificação dos cidadãos não pode continuar a ser ponderada, apenas, do ponto de vista tecnocrático, como um valor de mercado. É também um valor cultural e de cidadania. Uma qualificada formação na área da Arqueologia constitui um substrato cultural de exercício da cidadania.
O que virá a ser a Arqueologia no futuro? Já propus em outros contextos que, com os meios de detecção remota que podemos calcular que estarão disponíveis em breve, torna-se dispensável escavar, pois a própria jazida e o sítio se podem transformar no próprio museu, potenciando uma perspectiva cultural aprofundada de valorização do território.
Nem todos os arqueólogos terão necessariamente que escavar, nem a Arqueologia pode reduzir-se à escavação, tem que se tornar cada vez mais transdisciplinar e transcultural, invadir incisivamente e em profundidade a Antropologia Cultural, a História da Arte, a Estética, a Filosofia, etc.
Vós comungais os vossos dilemas com muitos outros jovens atraídos para outras áreas de formação, como os professores. Desde há cerca de vinte anos que as tendências estatísticas indicavam a desertificação demográfica na Europa e nós continuávamos a formar exércitos de professores.
Não posso deixar de vos propor, mesmo que tal choque muitos dos meus companheiros da minha geração, que os cursos de formação profissional de técnicos de arqueologia, bem como a proliferação de variantes nas Universidades, serviam mais os interesses dos docentes, que necessitavam de enquadramentos periféricos de aplicação profissional, do que os dos formandos e alunos, que todos sabiam que se iriam defrontar com sérios problemas de enquadramento profissional.
A minha maior angústia, quando leio algumas intervenções vossas, assenta no medo de que vos venhais a tornar meros reprodutores da mentalidade anquilosada da minha e de precedentes gerações, reproduzindo atitudes, procedimentos, inércias, soluções conjunturais dimanadas do interesse e necessidade imediata, que, a longo prazo, nos lançarão num beco sem saída.
Espero de vós o que vós não podeis já esperar de nós, a criatividade, o longo alcance de vista, a solidariedade humana, a superação do individualismo egoísta, o espírito de associação na procura de soluções colectivas e solidárias.
Para isso tendes que desalojar os velhos. O futuro é vosso e está nas vossas mãos.
É apenas uma primeira formulação de fundo das questões que vos atormentam. Em breve desenvolverei tópicos mais objectivos.
Espero que possa contribuir para que tomeis consciência da vossa força e capacidade para mudar a vida. Nós não o conseguimos fazer.
Um abraço a todos.
Manuel
De novo, da minha solitária condição de cota maçador, invocando as minhas memórias, venho colocar à vossa ponderação talvez inesperadas questões, que em breve espero que compreendais de que forma podem contribuir para que se oriente para novos caminhos a reflexão sobre os problemas que legitimamente vos inquietam.
A maior parte de vós viveu como estudante, eu como professor, os debates que envolveram o ambiente em que decorreu a última grande reforma do sistema educativo, nos inícios da década de 1990. Todos, de uma forma ou de outra, se entusiasmaram com a perspectiva de que tudo iria mudar e de que uma nova era se abria para a educação e para a cultura em Portugal.
Muito poucos todavia se aperceberam de que a reforma tinha fundamentalmente duas vertentes e de que um intenso debate se instituíu sobre qual delas devia ser predominante. Uma era a vertente curricular, que mobilizava sobretudo um segmento tecnocrata do sistema, outra era a vertente cultural e pedagógica, que mobilizava sobretudo os segmentos do sistema mais envolvidos com questões doutrinárias relacionadas com o papel da escola e da sua relação com os múltiplos segmentos da comunidade.
Estas duas posturas tiveram mesmo protagonistas bem individualizados, por um lado o Professor Frausto da Silva, que presidia à Comissão de Reforma do Sistema Educativo, representando a vertente curricular e tecnocrata, por outro o Professor Manuel Ferreira Patrício, então Presidente do Instituto de Inovação Educacional, representando o Projecto Escola Cultural. Importa deixar desde já claro que a minha adesão ao Projecto Escola Cultural não foi incondicional, mas crítico.
O texto final da Reforma viria a apresentar-se, aparentemente, como um compromisso entre as duas correntes de opinião, mas era desde logo óbvio que o que viria a prevalecer era a componente tecnocrática e curricular, em detrimento da componente cultural e pedagógica que propunha como linhas axiais o ensino individualizado, o estreitamento da relação entre os agentes e sujeitos do processo educativo, a reciprocidade na aprendizagem entre o professor e o aluno, o reconhecimento da multiplicidade cultural e da diversidade de objectivos da escola e da escolaridade. Todos estes componentes rapidamente se esbateram e, em breve, tínhamos de novo turmas com mais de vinte e cinco alunos, a prevalência de componentes curriculares como o Português e a Matemática, os professores comprometidos com objectivos curriculares de sucesso educativo, com programas, etc.
A escolaridade obrigatória subia sucessivamente de nível e reforçava-se a sua universalidade extensiva a cada vez mais ciclos.
Devo dizer que, em meu entender, uma escolaridade obrigatória assente num currículo universal é uma perversão da sociedade democrática.
Mas o que quero transmitir, no fundamental, é que, no pensamento dos promotores de uma reforma predominantemente curricular e tecnocrática, esta opção visava com maior eficácia objectivos como a preparação dos jovens para a vida activa, para a sua inserção no mercado de trabalho e para qualificação da competitividade da Nação no mundo global.
Vós sois hoje os testemunhos de que isso não correspondia à verdade.
E o que me proponho debater convosco é o porquê.
E perguntar-me-eis o que interessa isso à Arqueologia. Interessa para ponderar e superar a vossa condição de desemprego e de desorientação no que respeita ao futuro da aplicação das vossas qualificações.
Manuel
Caros amigos.
No seguimento da penúltima intervenção, vou prosseguir propondo-vos à reflexão um assunto cujo significado só muito recentemente se tornou compreensível.
Durante quase duas décadas, o curso superior com número de ingressos mais restrito foi o de medicina. Presumia-se que se tratava de uma medida cautelar, visando a qualificação do sistema de saúde e a dos seus agentes. Nesta base toda a gente o aceitou.
Quantos jovens, que potencialmente se poderiam ter afirmado como excelentes clínicos, foram atirados para a periferia do sistema, acabando por concluir cursos de enfermagem, de biologia, de farmácia, etc..
De súbito, sabemos que a actual Ministra da Saúde, reconhecendo a escassez de médicos que sustentassem com eficácia o sistema, anunciou o recrutamento de médicos no Brasil e em alguns países do Leste europeu. Não sabemos quais os requisitos que vão presidir a tais recrutamentos e se equivalem ao rigor dos que estabeleciam a restrição de acesso aos nossos jovens.
Mas nunca houve restrição de acesso aos cursos de História, Arqueologia, às vias de ensino de várias áreas disciplinares. Por isso não vamos necessitar de recrutar arqueólogos, professores, historiadores, etc., no exterior, vamos atirar com os licenciados e profissionais de arqueologia, os historiadores, os professores para as caixas dos supermercados ou para os call center dos grandes operadores de telecomunicações. Ou para os bancos dos jardins.
Bem, para além do mais, com o peso tutelar do Estado sobre a área do Património, à partida, só o aparelho do Estado, ou das empresas privadas a que o Estado adjudica trabalhos arqueológicos, ou certifica para os fazerem, podem integrar profissionalmente arqueólogos.
Mas não há dinheiro para a arqueologia nem para cultura no contexto da alegada crise.
Vai ser necessária muita tenacidade e muita criatividade para sair desta ratoeira.
Eu, por mim, estou com os jovens e confio neles.
Façai um esforço para não reproduzirdes no vosso quotidiano os vícios de atitude da minha e subsequente geração.
Pensai futuro. Pensai em novas dinâmicas para a aplicação das vossas qualificações. Isso só será possível quando a arqueologia deixar de ser um assunto hermético e exclusivo dos arqueólogos e for devolvida à comunidade.
Manuel