quarta-feira, 7 de abril de 2010

Material e Imaterial.

Material e imaterial.

Continuação


Pedro Manuel Cardoso:

Caro Manuel de Castro Nunes, na próxima semana iniciarei a colaboração num ‘grupo de trabalho’ que tentará implementar um projecto de prevenção da violência nas Escolas. A antropologia será chamada a dar o seu contributo, através da lição que recebeu do legado dos que melhor souberam lidar com ela no passado. Afastar-me-ei até Agosto desta polémica sobre o ‘museu dos Jerónimos’. Quando regressar talvez me tenha enganado, e já haja uma solução, a bem de Portugal e do seu Património. É o que mais desejo. Contribui como pude para mostrar que há outras soluções e alternativas. É necessário que a política museológica e patrimonial esteja aberta a aceitar novas perspectivas e novos contributos. Mas é também necessário que os protagonistas e responsáveis que permanecem há anos nos ‘museus’ também o estejam. Que é um erro reduzir o programa de patrimonização da «ocupação humana e da vida no território a que chamamos hoje Portugal» à questão apenas dos ‘museus’, e muito menos à do ‘museu de arqueologia dos Jerónimos’.

Está na hora de abalar.

Sobre a questão dos arquétipos, talvez não tenhamos avançado muito mais do que avançaram os que estiveram entre 10 e 13 de Outubro de 1975 na Abadia de Royaumont. Massimo Piatelli-Palmarini relata esse admirável encontro entre Jean Piaget e Noam Chomsky (em português há a tradução das Edições 70, “Teorias da Linguagem, Teorias da Aprendizagem”, Porto, 1987) que transpõe a questão dos arquétipos para o impasse entre Genética e Cultura, que, como muito bem diz é “um nó a desatar”. Estiveram nesse debate muitos nomes importantes do saber do nosso tempo (G. Bateson, J.-P. Changeux, A. Danchin, J. Fodor, M. Godelier, B. Inhelder, F. Jacob, J. Mehler, J. Monod, J. Petitot, D. Premack, H. Putnam, R. Thom, D, Sperber, e outros). Nessa altura sentíamos os campos extremados, e esses dois domínios como fortalezas inexpugnáveis, obrigando-nos a ficar ou de um lado ou do outro da muralha. Razão pela qual Massimo Piatelli-Palmarini pôs na epígrafe a afirmação de Jacques Monod proferida em 1970: “Ao colocar a vasta questão: o que faz o homem ser homem? Verifico que há a sua Cultura, por um lado, e o seu Genoma por outro, é claro. Mas quais são os limites genéticos da Cultura? Qual é o seu bloco genético? Não sabemos nada sobre isso. E é pena, porque este é o problema mais apaixonante, o mais fundamental que há.”. Todavia, embora seja ainda um nó a desatar, houve avanços. Avanços que tornaram a inexpugnabilidade mais permeável. A ‘caixa de Pandora’ foi aberta por muitos, que agora não seria oportuno referir. Mas um desses responsáveis, que é crucial para o estudo da Museologia e do Património, e que já referi várias vezes, é sem dúvida Eric Kandel com o seu trabalho sobre a Memória. Ora, sobre os arquétipos Ernst Mayr lembra-nos que não viemos ao mundo como uma tábua rasa, viemos com um “programa fechado” que se foi gradualmente abrindo, e que está ainda muito mais fechado do que seria o nosso desejo. Os avanços da actualidade - depois do esforço dos ‘seis magníficos evolucionistas’ (Lamark, Darwin, Haeckel, T.H. Huxley, de Vries e T.H. Morgan) - mostram que em Homo há sempre uma ‘codificação bio-socio-cultural’ que se interpõe entre a Genética e a Cultura na qual é possível interferir. Ou seja, que os arquétipos podem ser modificados pela “agência” do sujeito humano. Mesmo que ainda só estejamos na infância dessa interferência.

Obrigado, Manuel de Castro Nunes.

Um abraço.


Pedro Manuel Cardoso


Manuel de Castro Nunes:

Prosseguindo uma troca de ideias.


Creia que lamento, Caro Pedro Manuel Borges, com toda a sinceridade, ver suspensa assim uma troca de ideias que, estou de acordo consigo, não podendo todavia reverter a dissincronia da acção e intervenção que se prepara para breve, qualquer que venha a ser a sua orientação, permitiria, pelo menos, avaliar, a priori ou a posteriori, as perversas consequências da acção que não aguarda os resultados de reflexões serenas.
E admito que se tivesse extenuado de andar assim, como ao lado de cego, passo a passo, mas não me restava alternativa, na diligente vontade de descodificar a sua mensagem. E também tenho a certeza, porque também o conheço, de que o itinerário de reflexão a que se reporta deveria já ter inundado o pensamento que suporta e deve preceder a intervenção museológica e museográfica. Estamos aqui em convergência incondicional.
Teríamos que procurar convergência acerca de quais os dados consolidados dessa reflexão estão habilitados para uma transferência inequívoca para o domínio da intervenção, mas, sobretudo, que implicações ideológicas subjazem a muitos deles. Deve ter compreendido que foi por essa razão que eu optei por fazer o itinerário passo a passo.
E por isso, porque não estou cativo do tempo, espero retomar este diálogo, quando lhe for oportuno.
Nada me resta pois senão enunciar-lhe, para podermos ordenar os tópicos se for o caso de prosseguir, as questões aonde pretendia centrar, passo a passo, a minha e a sua atenção.
Vou citá-lo:

''Sobre a questão dos arquétipos, talvez não tenhamos avançado muito mais do que avançaram os que estiveram entre 10 e 13 de Outubro de 1975 na Abadia de Royaumont. Massimo Piatelli-Palmarini relata esse admirável encontro entre Jean Piaget e Noam Chomsky (em português há a tradução das Edições 70, “Teorias da Linguagem, Teorias da Aprendizagem”, Porto, 1987) que transpõe a questão dos arquétipos para o impasse entre Genética e Cultura, que, como muito bem diz é “um nó a desatar”. Estiveram nesse debate muitos nomes importantes do saber do nosso tempo (G. Bateson, J.-P. Changeux, A. Danchin, J. Fodor, M. Godelier, B. Inhelder, F. Jacob, J. Mehler, J. Monod, J. Petitot, D. Premack, H. Putnam, R. Thom, D, Sperber, e outros). Nessa altura sentíamos os campos extremados, e esses dois domínios como fortalezas inexpugnáveis, obrigando-nos a ficar ou de um lado ou do outro da muralha. Razão pela qual Massimo Piatelli-Palmarini pôs na epígrafe a afirmação de Jacques Monod proferida em 1970: “Ao colocar a vasta questão: o que faz o homem ser homem? Verifico que há a sua Cultura, por um lado, e o seu Genoma por outro, é claro. Mas quais são os limites genéticos da Cultura? Qual é o seu bloco genético? Não sabemos nada sobre isso. E é pena, porque este é o problema mais apaixonante, o mais fundamental que há.”. Todavia, embora seja ainda um nó a desatar, houve avanços. Avanços que tornaram a inexpugnabilidade mais permeável. A ‘caixa de Pandora’ foi aberta por muitos, que agora não seria oportuno referir. Mas um desses responsáveis, que é crucial para o estudo da Museologia e do Património, e que já referi várias vezes, é sem dúvida Eric Kandel com o seu trabalho sobre a Memória. Ora, sobre os arquétipos Ernst Mayr lembra-nos que não viemos ao mundo como uma tábua rasa, viemos com um “programa fechado” que se foi gradualmente abrindo, e que está ainda muito mais fechado do que seria o nosso desejo. Os avanços da actualidade - depois do esforço dos ‘seis magníficos evolucionistas’ (Lamark, Darwin, Haeckel, T.H. Huxley, de Vries e T.H. Morgan) - mostram que em Homo há sempre uma ‘codificação bio-socio-cultural’ que se interpõe entre a Genética e a Cultura na qual é possível interferir. Ou seja, que os arquétipos podem ser modificados pela “agência” do sujeito humano. Mesmo que ainda só estejamos na infância dessa interferência.''

Ora, este nó de difícil desatadura, onde se cruza a genética e a cultura, é propriamente, do ponto de vista ideológico, o núcleo onde se vão cruzar todas as ambiguidades e também todos os riscos. Sobretudo quando damos o passo em frente, para o abismo porventura, quando anunciamos de seguida que os arquétipos, que nem sabemos bem ainda o que são, como bem diz, nem se são genéticos ou culturais, mesmo que sejam matrizes, aqui opera já o Caro Amigo precipitadamente a cisão entre o material e o imaterial, podem ser modificados pela agência do sujeito humano. Um passo no abismo, que não cabe no figurino do discurso. Parece-me, parece-me, sublinho, que nos estamos a colocar no patamar ético e deontológico dos problemas por resolver no que concerne à manipulação genética. Só que agora acrescida da cultural, porque não sabemos onde se cruzam. Quais são os limites genéticos da Cultura? Da ideologia, insistiria eu, que é cultura também.
Será que a circunstância de classe dos sujeitos, que reverte em cultura também, estaria já impressa na matriz genética?
Como vê, há caminhos com mais escolhos do que aqueles que vemos ao longe.
Ora, vou citá-lo de novo:

''A gestualidade é apenas uma parte das quatro partes do ‘objecto patrimonial’. Por exemplo no objecto patrimonial ‘copo’, o ‘modo de beber’ ou o ‘modo de o pegar’ são uma e a mesma coisa patrimonial - seja no Neolítico ou na contemporaneidade, seja no culto ou em ambiente profano. Que obviamente assumiram ‘formas’ (isto é, ‘documentos-dados’) diferentes consoante o tempo histórico. Assim o é também para os fonemas que o anunciam na fala; e para os ícones que o etiquetam, a quem F. Saussure (ou G. Gabelentz, 1891) chamou de “significantes”. Todas estas quatro partes são «uma dinâmica una da realidade constituinte do ‘objecto patrimonial’». O canto, a música, a desgarrada, o assobio, o pregão, a serenata pertencerão á ‘oralidade’. A quadra e a décima se forem registos alfanuméricos, ou se forem sinais ou escritas e não sons, pertencerão à ‘iconicidade’. Os modos de utilização dos músculos faciais á volta do zigomático, e dos outros no fazer dessa ‘oralidade’ pertencerão outra vez à ‘gestualidade’. Os ‘suportes’ onde tudo isto for registado pertencerão à parte da ‘materialidade’''

Terá que admitir que é difícil de admitir, mesmo firmados em muito pensamento consagrado já emitido, que copo, modo de pegar e modo de beber, para ordenar sincronicamente, sejam uma mesma coisa patrimonial. É também difícil de admitir a redundância da escrita, mau grado a noção de caligrafia, no estrato da iconicidade. E da oralidade no estrato da gestualidade, sem operar diferenciais distintivos. E que os suportes onde tudo ficou registado pertence à parte da materialidade, mesmo entre aspas.
E é difícil de admitir na coerência interna do discurso. Seja, o discurso contem em si o genoma, ou o vírus da sua negação.
E isso é razão para abandonar esta perspectiva de aprofundamento? Claro que não, Um estímulo para prosseguir com ela.
E é por isso que o terei que citar de novo:

''Que é um erro reduzir o programa de patrimonização da «ocupação humana e da vida no território a que chamamos hoje Portugal» à questão apenas dos ‘museus’, e muito menos à do ‘museu de arqueologia dos Jerónimos’''

Para concluir que, neste pé do problema, é um erro reduzir (…) à questão da negação dos museus e muito menos à do MNA.
É um passo de gigante.
Espero sinceramente que possamos voltar a dialogar e que, desanuviados destes equívocos, possamos entrar em convergência. Num tempo já que não será o da acção.

Um abraço.

Manuel

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