sábado, 7 de março de 2009

De archaeologica re
Acerca do que se deve considerar matéria arqueológica
Preliminares
Nada há de pior do que escrever, ou pretender constituir doutrina, na crista da onda. É a angústia do repórter ou do jornalista, a de ter que reportar, emitindo juízos ou contextualizações de apreciação, o que acontece, ou acabou de acontecer.
Tanto excelente repórter ou jornalista que se desqualificou neste exercício, porque não pôde reflectir serenamente sobre uma matéria que subjazia, sem que muitas vezes tivesse tido as condições para o ponderar, a um episódio que teve que reportar, na crista da onda. São os riscos da escrita événementielle.
Ora, a matéria sobre que vamos discorrer anda a vaguear, entregue aos caprichos da maré, na crista da onda. Não nos furtaremos todavia, por essa razão, a abordá-la, ou tentar abordá-la, de um determinado ponto de vista. Porque, muito antes de andar a vaguear na crista da onda, vagueava já na nossa congeminação, associada a muitos outros tópicos que entendíamos que perturbavam um ponderado alcance de vista.O que é arqueologia? Qual o alcance e o limite da sua matéria disciplinar, seja, do seu objecto? E quem deve ou quer ser o seu sujeito?O que é um objecto arqueológico e o que o distingue na sua especificidade? E o que é uma actividade, ou, do ponto de vista normativo, um trabalho arqueológico?
Quando, há cerca de dezoito anos, congeminei de forma estruturada esta matéria, entendi abordá-la de esguelha, ou seja, não valia a pena discorrer nos limites que ela pretendia impor-me. Isso equivaleria a abordá-la na crista da onda.
Por isso tive que fazer um exercício. Qual a matéria disciplinar, seja, o paradigma, que me toleraria indiciar as aparentes artimanhas do senso comum? Qual a disciplina que se erigira no núcleo do paradigma da modernidade.
Imediatamente, assim enunciada a questão, a luz acendeu-se. A medicina.
O que é a medicina, o que é a actividade médica, qual o seu objecto e quem o seu sujeito? E qual o papel da medicina, nomeadamente da cirurgia, na ruptura da modernidade com os paradigmas da tradição?
Uma disciplina, do conhecimento, da procura ou da intervenção não é uma entidade transcendente. Estruturou-se sobre um exercício e nos seus contextos, é na sua história que temos que indagar o que veio a estabelecer como os limites do seu alcance, seja, o seu objecto, e a consagrar o perfil do seu sujeito, seja, a conferir-lhe um estatuto e os referentes requisitos.
O caso é que, por essa razão, perdi de vista o móbil primevo e andei perdido durante uns anos pelos herméticos territórios da história da medicina, ou da cultura médica, porque, num dado momento dessa trajectória, não era já a história da medicina, mas a da cultura médica o que me interessava. O leitor virá a compreender porquê. (1)
E a matéria que presumidamente me servira para atacar de esguelha, pelo flanco, a archaelogica res, passara a ocupar a posição de núcleo axial da reflexão e andava a matéria arqueológica agora nos flancos, a rosnar às canelas da medica res.
E voltamos agora à matéria arqueológica na crista da onda. Porque, por mais que desse desígnio se tente furtar, a reflexão epistemológica acaba por redundar em contextos circunstanciais. É assim e pronto.
A arqueologia parece ter regredido até ao Século XVI e XVII, seja, ao período em que a medicina e a cirurgia, as duas em disputa, ordenaram as questões que, do ponto de vista do reconhecimento social do seu exercício, enunciavam o objecto e o sujeito.
Reabre-se então subitamente, em anacrónico contexto, um paradoxo tópico. O que é a arqueologia e qual o seu objecto e quem o seu sujeito, seja, o que é um profissional de arqueologia?
Tal como no Século XVI e XVII aconteceu com a medicina, a arqueologia vai agora redundar numa profissão, o seu sujeito num profissional, os seus objectos em pacientes. È sempre assim, quando se discorre na crista da onda.
Desde algum tempo que, antevendo que a matéria redundaria nestes tópicos, rejeitei a arqueologia, o arqueólogo e os seus objectos. Passei a discorrer sobre archaeomania, passei a querer ser mais um arqueómano e a designar os objectos pressupostamente exclusivos da arqueologia como infirmi ou pacientes.
E a disputar sobre a legitimidade da exclusividade da tutela da arqueologia sobre qualquer objecto.
Não apenas como objecto disciplinar, mas mesmo como objecto de uso e de exercício de múltiplas fruições ou de múltiplos contextos de fruição. E como sujeitos de múltiplos apelos.
E aqui estamos, na crista onda.
(1) Remeto o leitor para uma colectânea de ensaios que nunca consegui, nem porventura conseguirei concluir. Por isso continuam, desde há anos, no prelo.
Quando conseguir concluí-los, nem sei o que fazer então. Se tiver pois a paciência que eu já não tenho para lê-los, considere-os inconclusos e, se assim quiser, bem pode concluí-los, ao seu modo.
Acerca do objecto arqueológico
Em última análise, já o escrevi em vários contextos, a definição de objecto arqueológico e de objecto da arqueologia, caberá, do ponto de vista normativo ou coercivo, à arqueologia e aos arqueólogos.
Presumir-se-ia então que, previamente à formulação desta questão, deveríamos questionar o que é a arqueologia e o que é um arqueólogo. Até porque, como já apurámos nas nossas incursões pelos territórios da história de outras disciplinas, é o sujeito quem, consolidado o estatuto que reclamou, reclama a exclusividade sobre os objectos e lhes confere, a eles próprios um estatuto.
Ora, do ponto de vista da arqueologia temos que inverter este itinerário. Porque foi a própria arqueologia, no contexto da sua história recente, que gerou esta inversão e ambiguidade.
E a ambiguidade consiste no seguinte: o objecto arqueológico é propriedade ou domínio universal da comunidade, porque transporta a sua e a transporta para a sua colectiva memória, é um vínculo de solidariedade social no âmbito de uma dada comunidade e, nesse sentido, é pertença de todos.
Todavia, a arqueologia resguarda um domínio muito amplo da relação com o objecto arqueológico para a sua exclusividade e para a delineação desse domínio é crucial a definição do estatuto arqueológico do objecto.
Enquanto não escalpelizarmos exaustivamente esta matéria não vamos longe na abordagem de outras, seja, na definição do estatuto profissional do arqueólogo, na definição do objecto disciplinar da arqueologia, na definição de trabalho ou actividade arqueológicos em sentido estrito normativo, na definição da relação entre propriedade, posse, uso e domínio do objecto arqueológico.
Ora, o que é então um objecto arqueológico? Nada, objectivamente nada. E tudo.
Na verdade a definição de objecto arqueológico, como entidade singular e restrita, só pode ser estabelecida em referência à definição de objecto disciplinar da arqueologia, em sentido lato, seja, quais são as matérias sobre que a arqueologia se debruça.
Na sociedade actual, em que a cultura e o acesso à cultura se sociabilizou, a habilitação para uma corporação ou mesmo uma área disciplinar em abstracto, despojada teoricamente da enunciação dos seus sujeitos, enunciar a exclusividade da sua intervenção e delimitar um objecto, ou um universo de objectos restringiu-se significativamente.
Poderemos recorrer de novo, como paradigma, à medicina. Como é óbvio, no que à medicina respeita, a definição do seu objecto, ou dos seus pacientes, é desde logo restringida pela vontade de cada um, que tem a liberdade, todavia condicionada pela dramática necessidade da realidade da vida, de recusar a dispor-se como objecto.
Dado a sua específica natureza, uma vez que interfere com a derradeira liberdade de o indivíduo dispor do seu corpo, pelo menos no âmbito doutrinal de uma sociedade livre, a medicina encontra-se assediada por complexas questões de natureza deontológica e epistemológica, que deixaram de lhe dizer exclusivamente respeito, porque a sua abordagem se sociabilizou e tão habilitado se encontra o enfermo para se pronunciar sobre a legitimidade do acto ou da actividade médica, quanto o médico.
Para mais, a medicina institucionalmente reconhecida numa dada sociedade, pese todavia o peso institucional das corporações médicas, encontra sempre cada vez mais estruturadas resistências de propostas disciplinares alternativas, que podem mesmo questionar todo o edifício doutrinal dos seus fundamentos. Ou seja, cada medicina teve que confrontar-se com o facto, incontornável, da diversidade. Há várias medicinas, cada uma com os seus fundamentos doutrinários, com as suas propostas de intervenção sobre a matéria ou matérias médicas, quase todas disputando contra a exclusividade das outras ou reclamando-a para si.
É no domínio axial destes debates que o estatuto dos sujeitos se reestruturará também.
Mas de novo se interrogará o leitor, que terá a ver a medicina com a arqueologia?
Tem a ver, do ponto de vista da abordagem da matéria própria de uma disciplina, com todas as outras disciplinas. Mas, em particular, com a arqueologia.
Porque se o objecto da arqueologia se considera património colectivo de uma dada comunidade, sendo de ressalvar que foi a própria arqueologia que durante décadas da sua história recente acentuou a tónica deste tópico, então a comunidade e cada um dos seus segmentos ou sujeitos singulares devem poder pronunciar-se não apenas sobre matéria arqueológica em sentido lato, como sobre a delimitação do domínio estrito das intervenções que requerem um dado estatuto, seja social, académico, profissional ou meramente técnico.
Que sentido faria que alguém viesse reclamar que uma associação local ou regional, de formação espontânea, de cidadãos preocupados com questões ambientais, vinculado à protecção e estudo de uma espécie, não poderia intervir em qualquer domínio que entendesse adequado a realizar os seus fins, desde o recenseamento, a observação e até o apoio aos dispositivos de reprodução, mesmo que a sua actividade chocasse com os programas institucionais de intervenção, que, na sua maioria, as comunidades não conhecem ou liminarmente rejeitam?
Suspendamos provisoriamente esta perspectiva de formulação do assunto, para questionar de novo: o que é um objecto arqueológico?
Bem, começaria por propor que depende de quem enuncia a natureza arqueológica de um objecto, ou a sua exclusão do universo da arqueologia.
Eu posso muito bem tratar como um objecto arqueológico aquele que um arqueólogo, ou todos rejeitaram. E não faço mais do que usar da minha liberdade de me relacionar com um objecto da forma que entender.
É óbvio que a minha relação com um objecto, seja ou não arqueológico, está à partida sujeito a limites de alcance, na maior parte dos casos normativamente ou legalmente delineados e enquadrados. E estamos já a cruzar a análise da proposição objecto arqueológico com essa outra trabalho ou actividade arqueológica.
E atingimos então o cerne da questão.
Interludens
De praecaria lege, celeriter emissa, celeriter cadente
E então, como calhou que interviéssemos sobre a matéria na crista da onda, façamos aqui um interlúdio, suspendamos brevemente as questões de fundo, que são as que interessam, para assobiar descontraidamente no passeio público, onde todas as conjuras conjurativamente se tangem.
A interpretação de senso comum de que, numa democracia liberal, o Estado representa o interesse colectivo dos cidadãos, ou da maior porção deles, é talvez uma das mais mediáticas perversões do sentido doutrinário que lhe subjaz. A mais radical proposição, ou interpretação, seria a de que o Estado é sede de exclusividade de tal representação, deduzida da expressão eleitoral que reclama.
E, não fora todavia a sequência avassaladora de episódios mais ou menos burlescos que afectam irrecuperavelmente a confiança dos cidadãos, mesmo dos eleitores das maiorias, na função do Estado na cúria da res publica, mesmo assim, tal interpretação adviria de uma perversão dos princípios doutrinários da democracia liberal.
A mais linear configuração, em contexto de expressão jurídica, da formulação doutrinária da função do Estado numa democracia liberal, de resto sempre invocada como paradigma, é a consignada no direito penal americano, the United States versus sicrano ou fulano. Quando se senta no banco do tribunal, como réu ou como queixoso, ou acusador, o Estado coloca-se teoricamente em pé de igualdade com o cidadão, seja singular ou colectivo. E digo teoricamente porque, na prática, bem o sabemos, o Estado pode mobilizar meios, aparatos e dispositivos que o cidadão comum não alcança, ainda que de alguma forma tenha contribuído para os suportar financeiramente.
As súbitas e inesperadas ocorrências que abalam nos seus fundamentos a sociedade global desde há cerca de um ano, ou que se tornaram visíveis desde então, vão com certeza obrigar a profundas reflexões sobre o papel do Estado na sociedade do futuro e sobre a sua relação com os cidadãos, singular ou colectivamente constituídos. O risco que corremos é o de as soluções precederem as reflexões. Se tal acontecer, em minha opinião, o Estado reforçará a esfera de exercício de poderes arbitrários debilitando a esfera de intervenção dos cidadãos.
Introduzo então outra questão. É óbvio para todos que a maior debilidade, ou talvez legitimidade reforçada, de um sistema jurídico ou aparato normativo reside no facto de nenhum conseguir cobrir a imensa complexidade da vida humana e das relações entre os seres humanos entre si, ou entre estes e as coisas. Para além do mais, nenhum aparato normativo consegue a acompanhar com eficácia a celeridade das contínuas alterações estruturais das relações sociais.
Quando a sociedade se move e se altera, a lei caduca. E se não caduca formalmente, atrapalha, não cumpre o seu papel substancial, permanece como uma grilheta que impede a natural mobilidade das relações sociais. Bem, devemos admitir que, nesses casos, a sociedade se tem revelado surpreendentemente criativa e hábil para conviver com os aparatos normativos que transcendem a complexidade do drama do seu quotidiano. Ou seja, há sempre um território da vida humana onde a lei não consegue introduzir-se ou interferir.
Devo contudo assinalar desde já um pressuposto. Não sou juiz, nem advogado ou magistrado. O que não me impede de manifestar a minha opinião sobre a res juris, como a manifesto sobre a archaeologica res não sendo arqueólogo, ou sobre a medica res não sendo médico, talvez mais bruxo ou feiticeiro.
Ora, para que não nos percamos em temas triviais, sintetizemos o corpus normativo que condiciona as proposições nominais objecto ou património arqueológico, actividade ou trabalho arqueológico e arqueólogo, mais propriamente profissional arqueólogo. Aqueles poucos a que, incompreensivelmente, no momento em que se trata de reformulação dos aparatos normativos, quase todos os intervenientes parecem incontornavelmente vinculados.
E citaremos, por bastantes para o efeito, os seguintes:
A Convenção Europeia para a Protecção do Património Arqueológico, subscrita em 1997 por 28 Estados.
A Lei de Bases do Património Cultural Português, decretada pela Assembleia da República em 2001.
Na Lei de Bases (..) é o Capítulo II que trata na sua especificidade do Património Arqueológico, cuja definição específica e cujas disposições a que se sujeita devem ser enquadradas para os correspondentes introdutórios e genéricos.
No Artigo 77 do referido Capítulo determina-se:
Artigo 77.º
Trabalhos arqueológicos
Para efeitos da presente lei, são trabalhos arqueológicos todas as escavações, prospecções e outras investigações que tenham por finalidade a descoberta, o conhecimento, a protecção e a valorização do património arqueológico.
São escavações arqueológicas as remoções de terreno no solo, subsolo ou nos meios subaquáticos que, de acordo com metodologia arqueológica, se realizem com o fim de descobrir, conhecer, proteger e valorizar o património arqueológico.
São prospecções arqueológicas as explorações superficiais sem remoção de terreno que, de acordo com metodologia arqueológica, visem as actividades e objectivos previstos no número anterior.
A realização de trabalhos arqueológicos será obrigatoriamente dirigida por arqueólogos e carece de autorização a conceder pelo organismo competente da administração do património cultural.
Não se consideram trabalhos arqueológicos, para efeitos da presente lei, os achados fortuitos ou ocorridos em consequência de outro tipo de remoções de terra, demolições ou obras de qualquer índole.
No Artigo 74 do mesmo Capítulo, tratara-se já da definição específica de património arqueológico, seja objecto arqueológico ou da arqueologia.
Artigo 74.º
Conceito e âmbito do património arqueológico e paleontológico
Integram o património arqueológico e paleontológico todos os vestígios, bens e outros indícios da evolução do planeta, da vida e dos seres humanos:
Cuja preservação e estudo permitam traçar a história da vida e da humanidade e a sua relação com o ambiente;
Cuja principal fonte de informação seja constituída por escavações, prospecções, descobertas ou outros métodos de pesquisa relacionados com o ser humano e o ambiente que o rodeia. O património arqueológico integra depósitos estratificados, estruturas, construções, agrupamentos arquitectónicos, sítios valorizados, bens móveis e monumentos de outra natureza, bem como o respectivo contexto, quer estejam localizados em meio rural ou urbano, no solo, subsolo ou em meio submerso, no mar territorial ou na plataforma continental.
Os bens provenientes da realização de trabalhos arqueológicos constituem património nacional, competindo ao Estado e às Regiões Autónomas proceder ao seu arquivo, conservação, gestão, valorização e divulgação através dos organismos vocacionados para o efeito, nos termos da lei.
Entende-se por parque arqueológico qualquer monumento, sítio ou conjunto de sítios arqueológicos de interesse nacional, integrado num território envolvente marcado de forma significativa pela intervenção humana passada, território esse que integra e dá significado ao monumento, sítio ou conjunto de sítios, e cujo ordenamento e gestão devam ser determinados pela necessidade de garantir a preservação dos testemunhos arqueológicos aí existentes.
Para os efeitos do disposto no número anterior, entende-se por território envolvente o contexto natural ou artificial que influencia, estática ou dinamicamente, o modo como o monumento, sítio ou conjunto de sítios é percebido.
Os sublinhados são meus.
Não sou obviamente o primeiro a emitir o juízo de que o âmbito desta definição de trabalho arqueológico não apenas é de um radicalismo, a bem dizer prepotência, que só pode motivar a sobranceria e ironia, mas, sobretudo, a sua radical intenção de abranger tudo só poderia ter como consequência a de que não consegue abranger nada. Teoricamente, ou não tão teoricamente como isso, citaremos mais adiante episódios reais, poder-se-ia deduzir desta formulação que eu, que não sou arqueólogo mas arqueómano, não posso ler uma publicação científica sem pedir autorização, ou acompanhado por um douto arqueólogo. Pelo menos, não posso passear pelo campo a olhar para o chão, mesmo que nem sequer levante um calhau para afugentar um cão vadio, não vá andar por ali a guarda e prender-me. Se andar pelo campo devo andar a olhar para o céu, a espiar os passarinhos e a assobiar.
Como é óbvio virão os protagonistas da produção do diploma e da defesa da sua preservação essencial alegar que ela foi redigida assim para poder ser contextualizada. E eu alego que tal alegação significaria que os seus executores poderiam em qualquer momento aplicá-la segundo as circunstâncias, de livre arbítrio.
Bem, cruzemos esta definição com aqueloutra que respeita à de património arqueológico, seja objecto arqueológico ou da arqueologia.
Não seria também o primeiro a emitir o juízo de que o âmbito desta definição pode abranger tudo, sem abranger quase nada especificamente. E de que a formulação cuja principal fonte de informação seja constituída por escavações, prospecções, descobertas ou outros métodos de pesquisa relacionados com o ser humano e o ambiente que o rodeia contribui para a ineficácia essencial da formulação. E então aparecem depois os arqueólogos a alegar que o contexto é fundamental para a atribuição da denominação arqueológico a um objecto, ou a um universo de objectos que, do ponto de vista da interpretação literal do texto legal, pode até ser um tema, ou um assunto.
Bem, também se deduz do texto legal, ao contrário do que se vem especulando na crista da onda no domínio das abordagens triviais, mesmo emanadas por instituições ou entidades, individuais e colectivas, credenciadas, que, do património arqueológico, só constitui património nacional aquele que procede ou se identifica em resultado de trabalhos arqueológicos. O restante fica ao abrigo do disposto para o património cultural em geral, mesmo no que toca à aparentemente exaustiva caracterização dos regimes de propriedade, posse, domínio e uso.
Como é óbvio, o conhecimento e a valorização do património cultural são considerados, no espírito e na letra da Lei, direito e dever de cada cidadão, uma vez que são domínio da comunidade, exercido, independentemente do regime de propriedade, de acordo com o estabelecido genericamente.
Bem, para já, até retomarmos o assunto, importa apenas ressalvar que a definição de património arqueológico enunciada na Lei de Bases de 2001 é recorrente, literalmente, da que constava no texto da Convenção de 1997.
Ora, é no âmbito restrito destas formulações, mais uns poucos instrumentos regulamentares, que se pretende proceder à reformulação do estatuto profissional do arqueólogo e das condições de exercício da actividade, ou disciplina, bem como do universo de matérias, coisas e objectos a que respeita. No contexto em que o Estado anuncia a extinção da Carreira Profissional de Arqueólogo e em que muitas circunstâncias em que a arqueologia reclama o direito de exercer a sua actividade e tutela são contestados por segmentos cada vez mais extensos da comunidade, que tem tanta razão quando a acusa de relaxe como de excesso de cúria, as abordagens sistemáticas e doutrinárias abrangentes parecem-me muito mais relevantes do que as soluções circunstanciais.
Enfim, apenas em sentido alegórico, uma Babilónia... Que lei poderia ser aplicada numa Babilónia em que cada um fala a sua língua?

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