O Tesouro de Baleizão. Um Paradigma.
Este texto é extracto de uma sequência de intervenções no Forum Arqueologia, uma instituição cibernáutica de estatuto por definir. Foi programado na tentativa de o qualifcar, sonegando-o a insondáveis utilizações desvirtuadas, ou talvez não. Logo se verá.
Caros amigos.
Isto não é uma resposta a Vítor Roma, embora, de forma imediata, tenha sido suscitado por ele. Na verdade, se lerem os tópicos que tenho desenvolvido fora desta polémica, logo deduzirão que, em breve, levantaria estas questões. De resto, iniciei a sua abordagem no meu blog Archaeomania.
Fá-lo-ei à minha maneira, espero que tenham a paciência para seguir o meu raciocínio.
Se eu deixar a porta da minha casa aberta e alguém se introduzir nela para cometer dolo, correrei sempre o risco de que alguém alegue, ou suspeite, de que o fiz deliberadamente, por alguma incógnita razão. Este raciocínio é paradigmático da ficção policial, Agatha Chistie ou Connan Doyle.
E será este o tópico axial desta intervenção, deveria já ter chegado há muito a altura em que se protegesse o património cultural público curando dele e não denunciando atentados irremediáveis, que, em grande parte dos casos, ficam sem autoria atribuída. E curar dele não é encarcerá-lo sob vigilância remota de sofisticados equipamentos, é promover e suscitar a sua partilha pela comunidade, gerando afectos, contextos de fruição múltipla, integrá-lo activamente no quotidiano das gentes, que seriam os seus melhores guardiães.
Sei que não estou a produzir doutrina inovadora, O que reclamo é uma profunda ponderação sobre as formas concretas de a transferir para a prática.
Ora, esta é uma questão urgente para programar um futuro que não pode ser remoto. E que poderia constituir magníficos contextos de integração profissional de muitos jovens qualificados em várias áreas de intervenção sobre o património cultural, nomeadamente arqueológico. Um arqueólogo não tem necessariamente que escavar, haverá cada vez menos escavações para tantos arqueólogos.
Malogradamente, esta questão que nos obriga a ponderar com urgência um futuro próximo, transporta o peso dos episódios do passado. O que se perdeu jamais se recupera. No que respeita à arqueologia, um objecto que perdeu a sua referência ao contexto de que foi exumado jamais o recuperará. Posso ilustrá-lo com a minha experiência, com que não vos vou importunar agora.
Ora, a questão que coloco é: deixa por isso de ser um objecto arqueológico ou matéria arqueológica, ou seja, de suportar um discurso disciplinar arqueológico?
Em minha opinião não; e este é um debate que de forma nenhuma se encontra esgotado.
Suponhamos que o Vítor Roma tem razão, quando alega que parte dos objectos que integram o tesouro de Baleizão estiveram na sua loja em Estremoz em 2000, 2001 ou 2002, tanto faz?
Tal viria apenas consolidar suspeitas já estafadas. Quando digo estafadas não pretendo afirmar que não tenham fundamento ou partam mesmo de certezas, mas que está estafado um certo discurso acerca do que adviria para a validade intrínseca dos objectos a confirmação, já não a suspeita, de que se trata de objectos cujo contexto é já impossível de reestabelecer. Se tal confirmação suportaria a alegação de que, assim sendo, os objectos não interessam à arqueologia.
Mas a colocação desta questão obriga-nos a colocar de imediato outra. Se os objectos não procedem de um achado de Baleizão porque estavam em Estremoz em 2001, então, se admitirmos que a verdade atravessa transversalmente as alegações de Vítor Roma, os objectos proviriam da colecção reunida pelos seus pai e avô, eram conhecidas há mais de meio século. Partindo destas premissas começaríamos a entrar no domínio do absurdo e não haveria melhor ilustração acerca das histórias que se podem acumular sobre um objecto arqueológico descontextualizado do que este episódio.
A partir de então, pegamos numa trincha, varremos do objecto toda esta poeira e detritos que a história recente sobre ele acumulou e olhamos para ele já desempoeirado, atentos à informação intrínseca que nos transmite.
Vou fazer, com todo o respeito que me merece, um pequeno comentário ao texto de Raquel Vilaça para que Vítor Roma remete. Já conheço o texto desde que foi emitido, mas não sei se o Vítor Roma domina de facto a língua inglesa, uma vez que dele não consigo extrair as ilacções que dele quer tirar. Eu estou actualmente a produzir um trabalho de fundo sobre a ourivesaria primitiva da faixa atlântica peninsular e tentarei comentar, em sereno ambiente de partilha académica e científica, várias questões com a Professora Isabel Vilaça, sobretudo o limite do alcance em que podemos superar os métodos analíticos comparativos tradicionais, mobilizando dispositivos e procedimentos de manipulação laboratorial hoje em dia inquestionáveis.
Mas esse comentário não interessa para este local de abordagem, senão após resultar em conclusões consistentes.
É contudo de notar que Raquel Vilaça e Maria da Conceição Lopes são explícitas em lamentar o facto de muitos objectos se terem irremediavelmente perdido com base na rejeição por não aparecerem referidos ao seu contexto de achamento. Uma salutar disposição.
Vou fazer uma pausa neste tema, para iniciar a abordagem de outro.
Neste Fórum já se desenvolveu um debate acerca do uso de detectores de metais, da sua interdição, da legitimidade que suporta essa interdição e do seu alcance e a que circunstâncias se aplica.
O registo que gostaria para já de fazer é o de que nenhum dos arqueólogos de referência, e há vários a acompanhar este Fórum, desceu das suas sobranceiras tamancas para intervir nesse debate. E tenho a certeza de que o debate se teria tornado muito mais interessante se tal se verificasse. E não desonra qualquer arqueólogo intervir neste ou em qualquer outro fórum onde o seu saber se sociabilize e contribua para transferir a investigação arqueológica para o domínio da cultura arqueológica.
Ora, é por isso que eu digo que não sou arqueólogo mas arqueómano e venho da rua.
A arqueologia não é só investigação, nem uma área de salvaguarda de património em que intervêm exclusivamente profissionais arqueólogos, é cultura no sentido amplo de intervenção e partilha por parte da comunidade.
Como é que o Vítor Roma e outros fingiram durante tempo que não era mais do que isto que eu queria transmitir?
Estão então traçadas as linhas orientadoras da intervenção que quero prosseguir. Amanhã.
Um abraço para todos.
Caros amigos.
Prosseguindo.
Vou iniciar esta segunda parte da minha intervenção, retomando o tema com que rematara a anterior.
O meu amigo Professor Carlos Fabião participou em 2006, no fórum Al Madam, então extensão da homónima revista editada pelo Centro de Arqueologia de Almada, visivelmente associado, o Fórum, à comunidade detectorista, num dos primeiros debates públicos estruturados em ambiente cibernáutico acerca do detectorismo.
Por outro lado, tenho tentado mobilizar vários arqueólogos para que se inicie um sereno e profundo debate de que possa sair, ou não, uma consistente proposta de reformulação do corpus legislativo que define, regulamenta e atribui sede à actividade arqueológica, bem como define, até ao estrato derradeiro da propriedade, posse, uso e domínio, o património cultural em geral e arqueológico em particular.
Ao enunciar esta proposta parto sempre do princípio de que o corpus legislativo em vigor constitui um inerte, salpicado de ambiguidades e incoerências, e, por essa razão, não tem, no fundamental, aplicabilidade eficaz. Numa outra intervenção, quando atingirmos a maturidade das questões que programo equacionar, documentarei exaustivamente esta alegação.
Mas, em verdade, nem necessitaria. Porque, de facto, perdoe-me o caro amigo Carlos Fabião esta referência pessoal, a sua intervenção nesse debate acaba por redundar nesta conclusão. E, por mais apelos que faça à punição dos infractores, trespassa o seu discurso a amargura de a actual Lei não conseguir realizar os seus anseios, que, perdoe-me uma vez mais, se transferem do universo da arqueologia para o da psiquiatria. O Carlos Fabião sabe que eu sou assim, bárbaro, bruto e teimoso como um burro, mas leal. Se me responder na mesma moeda, só merecerá um fraterno abraço.
Porque, na minha óptica, que será a de qualquer legislador humanista, uma lei penal deve ser formulada tendo em mira o objectivo de não ter que ser aplicada, ou só o ser em circunstâncias extremas. O dispositivo legislativo envolvente e que a enquadra deve curar da realização desse objectivo.
Vivemos hoje numa sociedade verberativa, em que cada um espera sempre ver nas “garras da justiça” os seus circunstantes, como forma de esconjurar os seus próprios tormentos face à incerteza do futuro e à revolta contra o presente. Esta questão é do profundo foro da sociologia e da psicologia colectiva, mas gerou o perturbante clima da denúncia leviana ou torpe, da difamação impune, da calúnia sem rosto, de outros apelos porventura mais perturbantes.
Como já o disse antes, “culpa mea” ou “mea culpa” no que me compete assumi-la.
Mas, retomando, mal seria de uma lei que fosse produzida meramente para que alguém ficasse à espera que alguém a violasse para lhe cair em cima. O mínimo que se poderia dizer era que se tratava de uma lei persecutória, sem qualquer outro fim. E talvez ineficaz, se ninguém tivesse meios ou paciência para se postar de vigia no local e circunstância onde viria a ser violada.
E esta, associada a outras, é uma questão crucial.
Peço desculpa aos seguidores deste, mas uma nova e inusitada intervenção colateral de Vítor Roma, obriga-me a suspender esta aqui. Mas prosseguirei. Amanhã.
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