sexta-feira, 10 de abril de 2009

Arqueomania versus Arqueolgia

Em 1999, o presidente de uma fundação dedicada ao estudo e preservação do património histórico e arqueológico, pediu-me que lhe apresentasse um plano de trabalho para abordar vários tópicos da história e da arqueologia, renitentes referentes da sua região de origem. Não se tratava de um estudioso ou investigador, senão de um simples apaixonado pela história e pela arqueologia. A sua paixão era endémica e, se eu lhe pedisse para a explicar, não o conseguiria. Levei pouco tempo para concluir que eu próprio nunca compreenderia a minha.
Ora, o prólogo da apresentação dos resultados do trabalho que viria a realizar continua a ser a mais espontânea expressão de uma ideia que tento transmitir há muito.
O itinerário da minha relação com a arqueologia teve raiz arqueómana e a ela regressa. Mal será de um arqueólogo que queira reduzir a sua relação com a arqueologia a uma actividade profissional, ou a um exercício disciplinar. Será como um médico sem vocação.
E só pode ser no domínio desta paixão e deste afecto e quando a ele regressa, vertido para a linguagem de uma partilha sem prosélitos limites, que o trabalho do arqueólogo adquire o seu sentido.
Como apaixonado também da história da medicina e da cultura médica, tendo como referência o paradigma Vesaliano, temo mesmo mergulhar na arqueopatia: “e o que não diria ainda da vivissecação do cérebro”, confessou o médico.






Introdução




Limina Aritivm, ou seja a morada ou o território demarcado, porventura pelo fio da espada, dos arites, que não sabemos bem quem hajam sido, ou se foram sequer. A história é um jogo, em que a poética e a razão se degladiam, o sonho e a vigília mutuamente se dissipam e se confundem. (*)
Este programa de trabalho percorreu ele próprio um sinuoso itinerário e pejado de precalços, para se associar, até no destino, ao núcleo do seu tema, que era à partida, mau grado os pretextos, os caminhos e as veredas com o seu espectro interminável de hipóteses de sentidos e de origens. Caminhos para nenhures, em demanda de coisa nenhuma, para o Sol Nascente e para o Ocaso, ou acaso, sepultados na poeira do abandono e da memória, por onde, no vai e vem da vida e dos milénios, calcorrearam o mundo pastores e marinheiros perdidos, bufarinheiros alucinados e deuses despojados, cujos espectros ainda nos surpreendem por um instante breve, desolados no poial de uma fonte seca, saltitando de pedra em pedra sobre as passadeiras do vau de uma ribeira fresca, ou perscrutando lonjuras num cruzamento sem horizontes. A história faz-se na peugada dos espectros que se nos insinuam.
Estruturou-se em torno de uma ideia, em torno de tópicos tão vagos que até parecia que não partira, para lado nenhum, do horizonte remoto da mirambolância. Depois, a ideia foi ganhando referências a registos objectivos. Mas continuou o seu trilho incerto e foi encontrando, em cada objecto concreto com que foi povoando o seu horizonte longínquo, novos pretextos e razões para prosseguir, orientado aos quatro quadrantes. Acreditamos que os sonhos são premonitórios e os objectos reais já foram imaginados.
Em 1999, a Fundação para o Estudo e Preservação do Património Histórico-Arqueológico propôs-me que me debruçasse sobre um elenco de tópicos que sintetizavam séculos de invocações com que se foi esboçando a memória colectiva e a identidade do cidadão de Abrantes, morador do Tejo, do aquém e além Tejo, nas fronteiras dos míticos reinos de Tartessos e da Atlântida, vizinho de Moron, de Aritivm, de Tvbvcci, dos cinetes, dos cónios e dos sefes, que não sabia já bem de onde havia espreitado de longe o reboliço fumegante do acampamento legionário de Decimvs Ivnivs Brvtvs espraiado pela lezíria. Alcantilado nas escarpas sobranceiras, com o comboio a sulcar pachorrento as falésias, o seu olhar perdia-se perscrutando na superfície metálica do rio explorando cada curva, cada reaparecer serpenteante no horizonte, à procura de uma vela enfonada de qualquer barca romana ou cartaginesa, de um grupo de homens vergados ao jugo da sirga, em cuja ponta qualquer batel emergiria da bruma.
Durante alguns meses, não soubemos, nem nos interessou o que fazer. Simplesmente perdemo-nos pelas ravinas ou pelas planuras intermináveis, subindo e descendo os cursos pedegrosos de ribeiras e de rios, trepando aos cerros, atolámo-nos na lama e nas areias dos sapais, atrás de mitos, de divindades ocultas, que residiam nas pedras, nas árvores, no próprio cantar dos rouxinóis. A arqueologia é também uma bucólica, a atribuição de uma história à natureza. Aqui registava-se um caminho, ali uma ponte, acolá os escombros de uma presença milenar, uma anta, ou uma pedra simples e vadia a desafiar a imaginação locubrativa.
Nos fins de Dezembro, tínhamos um objecto para estruturar e dar consistência a esta itinerância renitente. O Tejo... e os caminhos, de novo. Basta andar por aí e ser-se vadio, para compreender que os caminhos fizeram a História.



(*)Parte-se aqui de um pressuposto, ou hipótese, talvez polémica, mas coerente nos meios requeridos para a formulação. Aritivm afigura-se em tudo como sendo o genitivo plural de um nome latino de tema consonântico ou semi-consonântico, i, referindo então uma condição de posse sobre um território ou um estabelecimento urbano.
Aritivm, como tópico da geografia humana antiga, aparece referido em dois contextos. Numa lâmina de bronze citada até à exaustão, publicada por Jorge Cardoso , Agiológio Lusitano, III, Lisboa 1666, que apareceu junto de Alvega em 1659, nas bordas de uma ribeira geralmente identificada com a Ribeira da Lampreia, que vai buscar as suas águas às imediações de Longomel, aparecem nomeados os Aritienses e Aritivm Vetvs. O monumento, geralmente designado juramento dos Arícios, é um estranho vínculo de fidelidade ao Imperador Calígula, com um cunho marcadamente corporativo e militar, que parece corresponder à integração dos Arícios na estrutura censitiva romana, constituindo porventura a Cohors Aritivm.
Também, ao traçar os dois itinerários principais de viagem de Vlissipo para Emerita Avgvsta, o itinerário de Antonino Pio, que adiante analisaremos, nomeia, no iter XIV, Aritivm Praetorivm entre Vlissipo e Abelterivm.
Como aconteceu com a Igaeditania, morada dos Igaeditani ou Igaeditanes, que num processo de etimologia pleonástica originou o nome de Igaeditanienses, senão podemos ainda presumir a pristina fórmula Igaedites com morada na Igaeditania, é de presumir que Aritivm, em tudo configurado como genitivo de Arites, designando a sua morada, tenha originado, quando as relações entre os nomes poderia ser já remota ou difícil de apreender pelos romanos, o nome Aritienses para designar os Arites. Ainda se poderia especular se os romanos não chamaram Aritienses aos habitantes de um oppidvm ou de um território que se apossou do nome Aritivm do território dos Arites, para distinguir os novos povoadores, ou colonizadores (aricienses por morarem no território Aritivm) dos veteres (antigos). E por isso se continuava a falar de um Aritivm Vetvs, designando o território, ou o oppidvm dos Arites. Mas a instituição que ficou vinculada ao conjunto dos Arites, Aritivm Praetorivm, como sede de uma Cohors Aritivm (Cohorte dos Arícios), manteve o pristino e imediato genitivo. Uns seriam então os Aritienses, habitantes de um oppidvm Aritivm, outros os Arites, senhores de um prévio territorivm ou dominivm Aritivm. Podemos presumir então um povo ou grupo étnico que se nomeou ou foi nomeado Arites, cultores de Arés porventura, que senhoreou um vasto território na área em que o nosso estudo se vai instalar, que trataremos ainda, no âmbito deste trabalho, de identificar e demarcar.

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